Nº 55: A Questão Militar

A Questão Militar

                                      Sapere aude   (ouse saber) – tenha a ousadia de fazer uso de seu próprio entendimento.

Prezados leitores e amigos,    

Este Desmonte vai fugir à forma padrão de encaminhamento, a saber, algumas sumárias considerações  e um anexo (os “Artigos Selecionados) contendo o resumo comentado de cerca de dez artigos julgados de maior interesse,  vale dizer, mais representativos do Desmonte em curso no País. Versará sobre a questão militar, como vista pelo autor destas coletâneas. Mas como pode ser constatado no texto, não se estará fugindo ao Desmonte do Estado Brasileiro … E os “Artigos Selecionados” que constariam como anexo a este Desmonte 55 seguirão em seguida, separadamente.

Refletindo sobre o momento atual, ocorre-me que é oportuno abordar, com pouco mais de detalhe,  a relação entre os militares e o governo Bolsonaro que, aparentemente, vai causando desconforto mútuo cada vez mais significativo.

Como introdução, a pergunta: por que os militares, afinal, aceitaram (gostosamente ) integrar-se  a um  governo como o de Bolsonaro? Como antecedentes, cabe indicar que, em livro recentemente publicado por Michel Temer, ele admite que, desde 2015, esteve em contato próximo com militares – incluindo o gen. Sérgio Etchegoyen e o então comandante do Exército, gen. Villas Bôas – conspirando para a queda da então presidente Dilma (“PT: golpista, Temer confessa que tramou a deposição de Dilma”  – https://www.brasil247.com/poder/pt-golpista-temer-confessa-que-tramou-a-deposicao-de-dilma).

Em abril de 2018, ainda Villas Boas no Comando  do Exército, ele fez pronunciamentos contra a concessão de habeas corpus que seria  julgado pelo  Supremo Tribunal Federal no dia seguinte. Em entrevista posterior, confirmou que  pretendia “intervir” caso o STF concedesse habeas corpus ao ex-presidente Lula; “Temos a preocupação com a estabilidade, porque o agravamento da situação depois cai no nosso colo. É melhor prevenir do que remediar”, disse. Durante o julgamento, (o habeas corpus não foi concedido pela  diferença de um voto), o min. Celso de Mello afirmou que as declarações de Villas Boas eram “claramente infringentes do princípio da separação de poderes” e “que parecem prenunciar a retomada, de todo inadmissível, de práticas estranhas (e lesivas) à ortodoxia constitucional” (“General Villas Bôas diz que calculou ‘intervir’ caso STF desse HC a Lula” – https://www.conjur.com.br/2018-nov-11/villas-boas-calculou-intervir-stf-hc-lula.

De tais fatos, parece despontar a conclusão cristalina: o nosso Exército conspirou contra um governo democraticamente eleito e interferiu em decisão  de nosso mais importante tribunal. Os propósitos podem ter sido considerados nobres, à época, mas as ações decorrentes foram decididamente inconstitucionais e hostis à Democracia. A meu ver, tais interferências contribuíram fortemente para a situação de descalabro político e jurídico em que ainda nos debatemos. Afinal, ou se respeita a Constituição ou entramos no regime do vale tudo, por critérios subjetivos.

É enorme a responsabilidade dos chefes militares que participaram de tais iniciativas e a História irá julgá-los com possível severidade. Naturalmente, tais atitudes não foram adotadas de afogadilho. Tinham um propósito. E este propósito parece ser a decisão militar de participar e influir diretamente na política nacional, no governo Bolsonaro. Talvez, a razão última que os induziu a tal perigoso desiderato tenha sido o receio, a meu ver pouco racional, de que a  esquerda continuasse/voltasse  ao poder com  Lula. Ora, quando a Democracia e as instituições democráticas estiveram  mais ameaçadas? Nos  governos Lula/Dilma ou no do Bolsonaro?

Ao final,  abriu-se uma ótima janela de oportunidade para que os miltares voltassem a dar as cartas na alta administração federal. São milhares de militares,  (até da  ativa), atrelados ao governo Bolsonaro. E, por mais que tais  militares tenham os mais  nobres propósitos, a opinião pública  tende a ver em tal crescente adesão cada vez mais o interesse pecuniário … . Esqueceram-se  os militares que, alçados a elevados cargos políticos,  ver-se-iam na contingência de serem tratados como políticos. E, mormente quando alguns de tais  cargos são ocupados por militares da ativa, suas Forças de origem são alcançadas por eventuais críticas  sobre eles emitidas em publico.

Não se pode enganar todos, todo o tempo. E o Exército conhece perfeitamente as qualificações de Bolsonaro. Segundo a “ficha de informações” produzida em 1983, pela Diretoria de Cadastro e Avaliação do ministério, Bolsonaro, então tenente com 28 anos de idade. “deu mostras de imaturidade, ao ser atraído  por empreendimento de garimpo de ouro’. Necessita ser colocado em funções que exijam esforço e dedicação, a fim  de reorientar sua carreira. Deu demonstrações de excessiva ambição em realizar-se financeira e economicamente”. Segundo um de seus superiores, “Bolsonaro tinha permanentemente a ambição de liderar os oficiais subalternos, no que foi sempre repelido, tanto em razão do tratamento agressivo dispensado a seus camaradas, como  pela falta de lógica” (“Bolsonaro era agressivo e tinha ‘excessiva ambição’, diz ficha militar” –  https://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/05/1884332-bolsonaro-era-agressivo-e-tinha-excessiva-ambicao-diz-ficha-militar.shtml  )

Mesmo com tais elementos de informação, o Exército decidiu apoiar Bolsonaro. Assumiu-se a premissa de  que o Presidente, até por sua fraqueza, após a posse iria fatalmente apoiar-se  na orientação militar. A  estratégia falhou, pois Bolsonaro,  depois de quase três décadas como deputado federal, passou a ser muito mais um (mau)político  do que  um  militar. E ai vai ocorrer um fenômeno que alguns referem à psicologia, terreno em que, por desconhecimento, não irei me aventurar. Mas é inegável  a impressão que se tem,  de que Bolsonaro sente certo  prazer   em mostrar  que é ele quem manda, não hesitando em provocar humilhações públicas a seus antigos chefes ou admitir que o façam, sem interferir.

Era de se prever que,  cedo ou tarde,  iriam se chocar dois  modos de ser  bem distintos: os militares, para que sejam alçados aos postos mais elevados da carreira, necessariamente devem ser dotados, em algum grau, de uma visão geopolítica e geoestratégica. Tal visão é incompatível com a atual política externa.  Eles também, valorizam o combate à corrupção (o que os levam muitas vezes a desdenhar do político  profissional – embora Bolsonaro tenha sido um deles ! …). Tais valores os induzem à não conformidade com  manobras visando livrar familiares do presidente dos rigores da Lei e medidas como a aproximação desenfreada ao Centrão e as consequências derivadas …

Tais choques, entre outros que o espaço não permite apresentar, produziram eventos marcantes  e desagradáveis aos militares. Anteriormente, eles  já haviam sido afetados com as defecções pelo governo  de chefes respeitados, em um dos casos (gen. Santos Cruz – ex-Secretário Geral da Presidência da República, demitido em junho de 2019),  por pressão de um dos filhos de Bolsonaro (Carlos)  e dos olavistas   (https://www.bbc.com/portuguese/brasil-48631592). Em novembro de 2019, foi a vez do gen. Santa Rosa, Chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos,  pedir demissão, segundo ele visando antecipar-se à “fritura” que ocorre em tais situações ( https://gauchazh.clicrbs.com.br/politica/noticia/2020/10/rego-barros-e-comparado-a-santos-cruz-ckgv0x2lt001o01jdi6elma4e.html).  Mais recentemente, ocorreu a rumorosa desautorização ao gen. Pazzuelo (da ativa) que,   antes de assinar a tal carta de intenções  assinalando a compra  das 46 milhões de vacinas chinesas (Sinovac/Butantan), certamente consultara previamente o presidente (https://globoplay.globo.com/v/8960078/). Pazzuelo foi desautorizado em público e, ainda no hospital, fez a infeliz declaração de que no governo Bolsonaro  “é  simples assimum manda e o outro obedece”. Em rápida sequência, coube ao patético ministro do Meio Ambiente  .Ricardo Salles  debochar, publicamente,  do gen.Braga Netto, Ministro-Chefe do Gabinete Civil (um militar no Gabinete Civil?!?) apelidando-o de  “Maria Fofoca”. Posteriores desculpas pro forma do Salles não encerraram o episódio.

O próprio gen. Santos Cruz, já nomeado anteriormente, contrariando seu perfil discreto, fez publicar artigo, em outubro p. p.,   que teve muita repercussão (https://gauchazh.clicrbs.com.br/politica/noticia/2020/10/rego-barros-e-comparado-a-santos-cruz-ckgv0x2lt001o01jdi6elma4e.html . Nele,  Santos Cruz faz constar que “Infelizmente, o poder inebria, corrompe e destrói” e mais “Os líderes atuais, após alcançarem suas vitórias nos coliseus eleitorais, são tragados pelos comentários babosos dos que o cercam ou pelas demonstrações alucinadas de seguidores de ocasião”. E completou: “alguns ‘assessores leais’ deixam de ser respeitados e ‘outros, abandonados ao longo do caminho, feridos pelas intrigas palacianas’ A autoridade muito rapidamente incorpora a crença de ter sido alçada ao Olimpo por decisão divina, razão pela qual não precisa e não quer escutar as vaias. Não aceita ser contradita. Basta-se a si mesmo. Sua audição seletiva acolhe apenas as palmas” . (Consta que o artigo mereceu aprovação no meio militar).

O vice-presidente gen. Mourão também já teve seus choques com Bolsonaro. De uma feita,  ao afirmar que é lógico que as vacinas chinesas irão ser compradas, quando pouco antes Bolsonaro afirmara que não iria adquirí-las de forma alguma. Em outra ocasião, Mourão defendeu uma postura de equilíbrio, caso a eleição americana fosse depender da Suprema Corte daquele país, contrariando a posição de Bolsonaro, de ostensivo apoio a Trump.

As informações acima não estariam completas sem dois acréscimos. Em primeiro lugar, mencionar que alguns dos generais palacianos (Heleno e Fernando Azevedo, Ministro da Defesa, à frente) foram de grande valia a Bolsonaro, a seu tempo,  quando ele ensaiou uma posição de força junto ao STF e ao Congresso, beirando um ato contra a Constituição. Em tais momentos, as declarações “duras” de tais autoridades serviram como aríetes, visando, aparentemente,  intimidar as Instituições “que estavam saindo dos limites” (como vistos pelo governo…). Finalmente, indica-se que a vitória praticamente assegurada de Biden, nos EUA,  vai valorizar a ala militar do governo com concomitante depreciação  da  influência de Olavo de Carvalho e da ala mais radical e ideológica do governo. (Talvez os mins. Araújo e Salles já devam ir cogitando de limpar suas escrivaninhas …)

 É nesse ponto que ora estamos. Vários analistas assinalam a  insatisfação nas hostes militares com as atitudes e ações desrespeitosas  do presidente e de alguns de seu círculo mais chegado  em relação ao militares do governo. Outros já adiantam que os militares ora cogitam afastar-se do governo. (Ver por exemplo  https://noticias.uol.com.br/colunas/chico-alves/2020/10/31/parceria-dos-generais-com-governo-bolsonaro-esta-por-um-fio.htm). Mas como fazê-lo?  Dependendo  de como ocorra o afastamento, acaba o governo, de  tal sorte está sustentado pela participação militar em todos os escalões, por mais afastados que estejam das atividades castrenses de origem (mormente  no Min da Saúde! …)

 De minha parte ficaria muito feliz se ocorresse tal afastamento. É minha convicção que a participação maciça dos militares  no governo  Bolsonaro já está acarretando  sério desgaste ao conceito que a população  nutre pelas suas Forças Armadas. E quanto mais demorar tal afastamento, maior será tal desgaste. Simples  assim!

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