Caros amigos/leitores,
Inicia-se esta “Reconstrução” com grande alegria e satisfação A condenação de Bolsonaro e dos seus asseclas mais próximos, do chamado “núcleo crucial”, constitui-se um marco da Democracia em nosso País. Desnecessário relembrar aqui o vulto das pressões que experimentou o STF e, especificamente, a sua 1ª turma, incluindo, em caráter inédito e inteiramente descabido, ameaças diretas do presidente do país mais poderoso do mundo. Tais ameaças, anteriormente ao veredito, já haviam se consubstanciado, concretamente, pela imposição de elevadas tarifas de exportação para os Estados Unidos (50%, para uma série de produtos), cancelamento de vistos para entrada nos EEUU e. inclusive, a imposição da lei extraterritorial estadunidense denominada Magnitsky,[1] ao min. Alexandre de Moraes.
Muito já se escreveu sobre as reais causas do “tarifaço” aplicado ao País. Em princípio, parece claro que as motivações de tal agressão são muito mais políticas do que econômicas. Recorde-se, de pronto, as declarações de Pete Hegseth, secretário de Guerra dos EUA, em discurso no US Army War College, em 23/04/2025: “Vamos recuperar nosso quintal.” … Notar que a afirmação faz muito sentido geopolítico, no momento em que os Estados estão buscando acentuar sua influência em nosso subcontinente. Ainda no contexto de moldura mais geral, lembra-se também a afirmação de Trump segundo a qual a desdolarização, caso concretizada, corresponderia à derrota em uma terceira guerra mundial.
Assim, ganha relevo a defesa feita por Lula e Dilma Rousseff a favor da desdolarização, na última reunião do Brics, no Rio de Janeiro; a viagem de Lula a Moscou, quando da comemoração dos oitenta anos da derrota do nazifascismo; as críticas ao genocídio sionista na Faixa de Gaza; e, mais, a fala de Lula reafirmando a soberania de nosso País e indicando que “o mundo não tem mais imperador”. Tais parecem ser os fatores que mais pesaram para a imposição do tarifaço ao País, em dose máxima (ao lado da India). O cientista político Jorge Folena chegou a afirmar explicitamente que “Trump não liga para Bolsonaro. Seu alvo é o Brics”. Não se chega a concordar inteiramente com Folena. Afinal, houve compromisso, segundo notícias na Imprensa, de que Bolsonaro retiraria o País dos Brics, caso reeleito, não sendo de desprezar-se, ainda, a grande vantagem que adviria para os EUA, em caso de uma vitória da direita (extrema-direita) nas próximas eleições presidenciais no Brasil. De toda a sorte, cabe não esquecer que a menção ao processo contra o Bolsonaro constituiu-se a indicação inicial da “carta” de Trump a Lula.
Vale a pena destacar aqui a postura de nosso Presidente ante as insolentes ameaças contidas em tal carta, encaminhada em forma de correspondência aberta, (às favas a diplomacia!), onde virtualmente se determinava ao País interromper “IMEDIATAMENTE” (assim, mesmo, em caixa ala) a ação em curso contra Bolsonaro e se informava a imposição das tarifas já imencionadas de 50%. Em clara linguagem intimidatória, a mensagem não deixava em aberto nenhuma linha de negociação. Desde o início, Lula afirmou sua postura: as tarifas poderiam ser negociadas (embora os EUA acumulassem um superávit de US$ 410 bilhões no comércio com o Brasil nos últimos 15 anos), mas a soberania era inegociável. Acredito que tal posicionamento tenha causado alguma surpresa a Trump que, aparentemente, esperava uma acomodação do Brasil correspondente à subserviência que demonstrara Bolsonaro quando Presidente. Via-se também um de seus filhos traiçoeiramente agir, com o maior desenvoltura, junto ao Congresso americano e a assessores de Trump, visando a imposição das mais elevadas medidas punitivas possíveis contra o seu próprio país. Esse o erro de Trump: imaginar que a métrica das atuais lideranças brasileiras fosse refletir a dos “próceres” brasileiros com que se acostumara a lidar antes. Mas, agora, defrontou-se com pessoas da têmpera de um Lula e de um Alkmin, na Presidência; de um Alexandre de Moraes e de um Dino, no STF; de um Haddad, de um Celso Amorim, entre outros.
A meu ver, um fator importante, que muito pesou na decisão de Trump e não é muito realçado, tem origem psicológica. Trump vê em Lula alguém que se lhe sobrepõe em vários aspectos. o que não é admitido intimamente pela sua insegurança e sua necessidade de levar vantagem em tudo. Para começar, Lula, sem dispor de poder militar, é admirado em todos ao quadrantes do mundo, que reconhece nele qualidades admiráveis de humanismo e de liderança Isto não ocorre com ele, Trump, cada vez mais menosprezado pelo seu autoritarismo e arrogância.
Segundo o cientista político e jurista Alysson Mascaro, a ofensiva norte-americana visa atingir o próprio Estado brasileiro. “Trump declarou guerra ao Brasil”. Alysson alertou ainda que as sanções contra o Brasil e a tarifa de 50% representam o uso do “porrete” do imperialismo, em substituição à política da “cenoura” – convencimento via incentivos econômicos e ideológicos. “Quando se abandona a cenoura e se parte para o porrete, é porque o império está em declínio”, afirmou.
Portou-se nosso Governo com destemor, mas sem provocações. De fato, há que se distinguir: os Poderes Executivo e Judiciário (STF) portaram-se plenamente à altura da grave crise. Já o Legislativo está até agora enredado nas idas e vindas de uma (inconstitucional) anistia a Bolsonaro e da intitulada PEC da Impunidade, assuntos que, pelas pesquisas de opinião, não são os de maior interesse para a maioria dos brasileiros, que aguarda o encaminhamento de temas de interesse popular maior – e não somente à família Bolsonaro – como a isenção do IR para quem ganha até R$ 5,5 mil, por exemplo.
O posicionamento altivo de nosso governo merece ser tão mais elogiado quando se verifica que tal não foi a reação de outros países. Sem preocupação cronológica. cabe relembrar os episódios humilhantes proporcionados por Trump na Casa Branca, em audiências aos Presidentes da Ucrânia e da África do Sul, respectivamente, Volodymyr Zelensky e Cyril Ramaphosa. Em ocasião oposterior, em seu resort de golfe, na Escócia, Trump também tratou com desdém a Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen e o Primeiro-Ministro britânico Keir Stammer. De fato, somente a China e a Rússia, foram (são) capazes de enfrentar os EUA. sem subserviência. A realçar, ainda, o vergonhoso acordo econômico que o Japão viu-se obrigado a aceitar com os EUA, por imposição de Trump.
Como é vista, no exterior, a posição de nosso País frente à crise? Segundo Joseph Stiglitz, vencedor do prêmio Nobel de economia, sob a liderança de Lula, o Brasil reafirmou seu compromisso com o Estado de Direito e a democracia, enquanto os EUA parecem estar renunciando à própria Constituição. Para o Washington Post, a postura americana representa um ataque direto à democracia brasileira e aos princípios jurídicos internacionais. “É difícil conceber uma ação que o governo Trump possa tomar na relação EUA-Brasil mais prejudicial à credibilidade dos EUA na promoção da democracia do que sancionar um juiz da Suprema Corte de um país estrangeiro por não gostarmos de suas opiniões judiciais”, declarou uma fonte do próprio Departamento de Estado americano.
A maior parte dos analistas acredita que a sobretaxa contra o Brasil, além de não fortalecer a economia americana, irá desorganizar cadeias produtivas daquele país, com consequente aumento de custos e instabilidade para empresas e consumidores. A retaliação contra o Brasil poderá ter um alto preço a ser pago internamente, algo que já está ocorrendo, dando margem às primeiras reações dos usuários.
De fato, o País deu uma lição de Democracia aos próprios Estados Unidos, ao punir exemplarmente, assegurados todos os preceitos legais, o responsável maior pela tentativa de golpe de estado e seus assessores mais diretos. Tal não ocorreu nos Estados Unidos, onde Trump não foi punido e ainda acabou reeleito, além de anistiar todos os participantes da tentativa de golpe também ocorrida naquele país, da qual, inclusive resultaram mortes. A proposito, convido o leitor a consultar a matéria ““The Economist: Brasil oferece aos Estados Unidos uma lição de maturidade democrática”, constante no anexo (28 AGO). Stefen Levitsky afirmou que o Brasil, apesar de suas imperfeições respondeu melhor às ameaças à democracia representadas por Jair Bolsonaro do que os Estados Unidos reagiram a Trump. “No final do dia, acho que o STF fez o que precisava fazer para defender a democracia brasileira”, declarou. Para ele, o STF “reprimiu uma ameaça conhecida à democracia” e isso tornou o país hoje “consideravelmente mais democrático do que os EUA”.
Para além das sanções impostas, incluído o tarifaço, existe no ar um nova e grave ameaça: a abertura de uma investigação pelos Estados Unidos contra o Brasil, com base na seção 301 da legislação americana, o que assinala um novo e delicado capítulo na relação entre os dois países. Além do Pix, o inquérito norte-americano lista uma série de práticas brasileiras que podem ser “discriminatórias e prejudiciais ao comércio dos EUA”. Entre os alvos citados estão: barreiras ao comércio eletrônico e plataformas digitais; falhas na proteção à propriedade intelectual; tarifas preferenciais; restrições à entrada do etanol norte-americano; desmatamento ilegal; e supostas deficiências na aplicação de normas anticorrupção, com referência à Operação Lava-Jato. No Governo, acendeu-se o alarme: uma vez instaurado o processo, as margens para acordos ficam drasticamente eduzidas. “Se houver condenação, há medidas que os Estados Unidos são legalmente obrigados a tomar. É um processo muito grave e perigoso”.
De toda sorte, existem decorrências positivas. Segundo Rubens Ricupero, ex-embaixador do Brasil em Washington, a postura de Trump constitui um “presente eleitoral” ao presidente Lula.. Em entrevista à revista CartaCapital, Ricupero avaliou que a iniciativa fortalece a posição de Lula em defesa da soberania nacional. As investidas grotescas de Donald Trump contra o Brasil criaram uma onda de intenso sentimento patriótico, em defesa do governo Lula e de profunda irritação com a família Bolsonaro. Outro fato auspicioso: muito embora o aumento das tarifas comerciais pelos EUA tenha colocado o Brasil no topo da lista dos países mais tarifados do planeta, ainda assim, em agosto, ocorreu um superávit de US$ 6,1 bilhões, um aumento de quase 36% em relação ao mesmo período do ano anterior!
Um plus: Lula foi o primeiro líder político de maior realce que acusou Israel de genocídio, há cerca de ano, tendo experimentado uma onda de críticas internas e externas Aliás, em minha opinião, o grande retardo da Europa em reagir a tal crime contra a Humanidade é uma das causas de sua desmoralização. Levou longe demais a subserviência a Washington!
Em termos geopolíticos globais, o mundo está assistindo a mudanças que irão marcar profundamente a Humanidade. É voz corrente, entre analistas de todos os matizes, o fato de que o “Mundo Ocidental”, como o conhecemos, está entrando em colapso, tudo indicando que o planeta acabará desemboscando em um mundo multipolar, onde os EEUU terão perdido sua supremacia. Como resta aos americanos um relevante fator de força – o seu incontestável poder militar – sempre há o risco de um “tudo ou nada” , com previsões catastróficas para a Humanidade. O tema, naturalmente, exige avaliações mais cuidadosas, não cabíveis neste texto.
Cabe uma última menção ao recente discurso de Lula, na abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas, que me encheu de orgulho, e ao encontro casual(?) com Trump. Abre-se uma janela de de entendimento com os EUA, a ser encarada com cautela.
Com tais considerações, despede-se, com um abraço amigo,
Luiz Philippe da Costa Fernandes
[1] A Lei Magnitsky, foi criada em 2012, durante o governo de Barack Obama, visando punir autoridades russas envolvidas na morte do advogado Sergei Magnitsky. Após emenda aprovada quatro anos após, a legislação passou a ter alcance global, permitindo sanções contra qualquer pessoa acusada de corrupção ou violação grave de direitos humanos — independentemente da nacionalidade. Cabe notar que já ocorreu tentativa anterior de aplicação extraterritorial de leis aprovadas pelos Estados Unidos, caso das leis Heims- Burton e D’Amato. Não parece concebível que o mundo civilizado admita que um país – por mais poder que detenha – pretenda estabelecer regulamento jurídico que se aplique extraterritorialmente a todos os demais.
Muito embora a imposição das novas tarifas por Trump seja relativamente recente, ela já se reflete em desaceleração econômica mundial. Segundo dados do Banco Mundial, em junho, a previsão de crescimento global em 2025 foi revista para baixo, caindo de 2,7% para 2,3% — uma redução de 0,4 ponto percentual. Trata-se do nível mais baixo de expansão em 17 anos, excetuando os períodos de recessão em 2009, durante a crise financeira, e em 2020, por conta da pandemia.